terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

CARTA DE UM POETA MORTO

Eu, poeta póstumo
breve infinito
deus doente de vísceras expostas
aos pedaços etc etc etc
desci ao salão de ossos; ante-sala
dos infernos de mim mesmo:
da vida fechada para balanço
da vida jogada em máquinas eletrônicas
e engoli fumaça negra de fábricas
enquanto recitava alto
meu canto azul desnorteado
em linhas de montagem com o frescor
de lírio no álamo.

Eu, que às vezes, amei mediocremente
não sei porque ainda recordo a íra
com que vieram contra mim; que ainda
recordo o amor que faltou para mim
que andei desgarrado e preso também
no fogo no tédio no sono.

Hoje, acordo denso e morto
à espera do silêncio definitivo
(os que ainda vivem, desapareceram
como rebanho de ventos
no último dia do século).
Quando ouvi isso
era como se mortificado
não pudesse afundar no silêncio
ali mesmo. Nem suportar tudo de novo;
outro dia outra infância.
Nem enfrentar algo novo
por envelhecido e com medo
de estar-me vivo apodrecendo
até o fim de tudo.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

ESTILHAÇOS

ca
cos
cacos
cacos de vidro
cacos de vidro caidos
cacos de vidro caidos espalhados
cacos de vidro caidos espalhados no assoalho
cacos de vidro caidos espalhados no assoalho da sala
cacos de vidro caidos espalhados no assoalho da sala de jantar
cacos de vidro caidos espalhados no assoalho da sala
cacos de vidro caidos espalhados no assoalho
cacos de vidro caidos espalhados
cacos de vidro caidos
cacos de vidro
cacos
ca
cos.

Nascimento do Poeta

Era o último dia de junho e morri

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até renascer na primavera
dissuadindo a Caronte barqueiro
e de Hipocrene a beber quimeras

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era o último dia de junho e morri
atraído pelo odor das galerias
consumado em todos os meus dias
mas para a desesperança da morte
ressurgi da tíbia do novo e amei-o
: desde julho ao fim do mundo

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era o último dia de junho e morri

deus desmemoriado e sofrendo
a peregrinação de romeiros e utopia de frades
: nos mosteiros, canto sacro
e nas ruas, de esmolas o motivo
: não temo o que seja princípio de dores
e devo a vida que tenho a morte que já sofri

.........................................................................

era o último dia de junho e morri.

Noite e Desesperança

Alma turbulenta
em corpo ágilmorto
à noite chego escasso

(de soníferas tardes
e bêbadas manhãs
migrei)

em mim uivam vigílias
:silêncios de quase abandono
e tigres a cobrir éguas senis

omoplatas suportam açoites
cataclismos nascem noturnos
:a esperança morre logo depois

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

CANTARES DA NOITE

A noite é longa.
E do longe, sombra alberga no íntimo
indiferente ao homem breve
de vigílias e náusea.

A metrópole: um milhão de sonos particulares.
A matéria do escuro (quando não havia abismo)
compondo a linha de estrelas
onde átrios pernoitam manhãs.

Essa equação sem aparato matemático
dorme artefato de corpos pretendentes
em busca de auroras presas
à meia-noite da hora.

A noite é vulva para os bêbados
bacante uivando vinículas
insônia de mortos velados.

Em sua gênese, antecede a noite
ao nada, princípio de anêmonas
esboço de signos suspensos no éter.

Na noite refugiaram-se os poetas
as putas, os funcionários públicos
os possessos profetas de alcovas
todos os gatos zincando telhados.

As palavras surgem e desaparecem
em seu percurso de poema
quando à noite, a solidão é ubíqua.

A malícia de uma mulher
aflora em sulcos de rosas
regadas em atmosfera noturna.

Os homens adormecidos dos dias inúteis, sempre
os mesmos serenos e decadentes pusilânimes
às horas escuras esperam anúncios luminosos
e suicídios em precatórios semeados.

Um dragão roxo nasce no pátio do sono, e
de suas narinas; a infância vermelha
a metálica angústia obtida
os lírios únicos anoitecidos.

Degustávamos congelados como a branca
carne de lua, ou a chama friíssima
onde voa o pássaro só, sob neblina
e o verde-amargo da solidão.

Lua!...
todas as minhas amarguras são tuas!
Enquanto eu te buscava entre estrelas
morte prematura atropelava a infância.

Todo amante já dormiu entre coxas da musa
para desespero de líricos ridículos, feitos
de rosas brancas e campos tímidos.

O meu olhar é longo como a noite;
indisfarçável é a vontade de estar
onde eu me nego.

Eu tenho o entusiasmo pela noite
como o amor que idealizara:
os ritmos dançam unânimes na madrugada

(mas esta noite não veio dançar comigo).

O Bloco EU

Ancho, como fosse o maior
sai hoje meu bloco
sem flabelo, orquestra
ou Menestrel.

A multidão não o acompanha:
só eu, de passista, corto o ar
com tesoura e dobradiça
ou bloco não haveria.

Sem fantasia... eu vou!
Alegre ou triste... eu vou!
A multidão não me acompanha.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

LAURENT (a meu filho, Laurent) parte II

Urde o tempo empalidecer-me o rosto
vendar-me os olhos, secar-me.
O futuro do corpo é extinto
mas tenho na alma secreta
inquieta e ágil de poeta
íntimo incólume e imenso conforto
no dínamo de teu nome
ou no aparato azul de julho

Pássaro sejas, para que não morras
surdo acrobata no arame que
só possa migrar ao chão durável
ou a terminar seu ato e tornar
aos vômitos quânticos
aos tímidos cânticos
ao anônimo rosto de sombra
e nada mais

Os lírios brancos...
amo-os, porque nos campos
concebem o desenho limpo
de madona desnuda e tenra;
febre que banha o intacto lençol
do líquen de nascer o invento
impregnado em carne úmida
de homem a cavalo

No silêncio das horas
de uma tarde tediosa e açoite;
de uma noite indormida e só
eu cheiro um pó de cinzas
e vou por entre nuvens
espessas do fim do mundo
acossado dentro de mim
pelo rictus da solidão

Ainda o poema duelava com o sono
despido das práticas inúteis
de nomear palavrórios
às margens de campos alvos;
e já eras signo libertado
da substância mera -- o poder
de dentro da palavra -- a palavra
que há, para que haja o poeta

O herói de corpo renovo
não prometeu vir para esse mundo
de cerco e pesadelos, ressurgido
por subterrâneas nascentes, contra
orgulhosos príncipes egoístas
e o que neles é insônia
ou metástase de seus delírios;
mas ele veio e amou

O que pode o homem sem o herói
e o herói sem o ofício?
Da chama à cinza, partem para o silêncio
de comícios definitivos, o nosso barro.
Vai assim, como jardim, teu sonho
e, sobre meu túmulo futuro já cresce
a flor sepulcral da noite
isenta de finalidades

Para ti mesmo é que vieste;
para que existas sem cessar
com tua própria linha cosendo
a tua roupagem de lírio;
de nada de anjo ou dragão roxo
do meu sonho sem mensagem
ou significação de silêncios:
para isto é que vieste.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

LAURENT (a meu filho, Laurent) parte I


Existir de que valeria
se não houvesses do amor
nascido, em infinito gozo
e no maior encanto?
Que pátria velaria eu
que mãe amaria eu
se da entranha delas
por mim amadas
não me viesses
Ser amado?

Em mim
incêndio do incêndio
eu me consumiria
noite da noite de eras
sem-fim, se não acontecesse
depois da última chuva
o teu sereno rosto
irromper luz de lamparina
em minha solidão
de tarde de outono

A represa da memória
nomeia o dia do século
de onde deixaste o casulo
no esforço de pássaro
santo ou inocente
a frequentar o céu
acima dos vaga-lumes
mirando os lírios brancos
os crustáceos em viveiros, e moças
de pernas enfiadas na lama

A tua notícia
foi evangelho as minhas páginas
a tua canção descobriu sons
olvidados em meu silêncio
(poemas carcomidos, doendo
nulos em caracteres aluminios
de letárgicas tipografias)
e me vi teu sósia, quando
estilhaçou-me os tímpanos moucos
teu choro alto a frequentar-me

O tempo a caiar-me os cabelos
perdeu seu trabalho de tempo
por causa do teu nome
e por ele cessou a sombra
que a solidão me condenara:
cessaram as perdas.
E tudo foi-me acrescentado
e tudo que me vencia
vencido estava, por dentro
por fora, por todos os lados

Há um diálogo aceso
entre mim e a tua inocência
como uma orquídea
e a mão que a cuida
de noite e de dia;
não só a planta, mas
a água e o húmus
a terra e o entorno
e desse cuidar, enfim
elaborá-se a beleza

Há uma voz e um silêncio
suspensos no espaço
em câmaras de eco
pelo fio-tempo (conduites
da energia que nos soma
e traduz nesse curvo lugar)
e ainda mais tenso
nasce o verso de agora
sob a lua da última rua
aonde estás, e, eu não mais

O rio que passa por detrás
da tua casa, desagua
antes do mar, na memória
intacta da minha retina;
passa por detrás
da tua casa, e abriga
além do peixe, a eternidade
das marés, no ir e vir
de procissões líquidas
a marejar meus olhos áridos.